CONCEITO

“Quem você pensa que sonhou?”, pergunta Alice a sua gatinha Kitty no final do livro “Alice Através do Espelho”, de Lewis Carol. A indefinição aí apontada perpassa não apenas esse livro, mas também o anterior “Alice no País das Maravilhas”. A temática do sonho, ou dos limites entre sonho e realidade, foram questões fundamentais para Lewis Carol, um escritor e matemático interessado nos limites da lógica e, principalmente, na impossibilidade de definição de sentido alcançado por paradoxos. Em seus livros, Lewis explora esses limites, jogando com enigmas apresentados à Alice, que por sua vez observa o mundo (real ou imaginário, onírico) a partir de elaborações ambíguas e também paradoxais.

A pergunta “Quem você pensa que sonhou?“ também a ponta para a questão do “Eu” que sonha: para sonhar, para acessar um inconsciente é preciso haver um “consciente”. É preciso alguém que se identifique como indivíduo e que a partir desse lugar possa imergir naquilo que o estrutura: seu inconsciente. Evidentemente, essa versão Lacaniana do sonhar pode ser questionada. Mas vamos adotá-la como ponto de partida para uma pergunta que poderia decorrer da primeira: uma máquina pode sonhar? Seria necessário uma consciência maquinal estruturada por um inconsciente maquinal para que o sonho se produza?

Sem querer esgotar aqui qualquer definição sobre o inconsciente em Lacan, vale lembrar que nele a construção do conceito de inconsciente está atrelado a um entendimento específico sobre o que é Linguagem: uma estrutura dinâmica de signos em contínuo processo de diferenciação. Esse processo de diferenciação em muito se assemelharia aos processos maquinais/computacionais de natureza discretizante e combinatória.

Se “acordarmos” sobre uma pretensa equivalência entre a estrutura simbólica do inconsciente e uma estrutura simbólica maquinal (logicamente simbólica, no caso), como poderíamos evidenciar, tornar tangível essa camada mais profunda da máquina? A obra DEEP ALICE explora esse universo ficcional onde o inconsciente maquinal encontra o inconsciente humano através do sonhar de Alice. Ao explorar a combinatória entre elementos (recortes em papel das ilustrações dos personagens) dos livros (disponibilizados na forma de imagens, signos visuais) e as informações contidas nos prompts (símbolos textuais), iniciamos uma hibridização contínua entre inputs do presente percebido pela máquina (através da câmera) e repertório/imaginário maquinal (banco de dados treinados para traduzir palavras em imagens). No caso da obra DEEP ALICE, a estratégia de recombinar elementos do livro inicia-se com combinações simples, que estão em ressonância com a habilidade do sistema maquinal de associar imagens mais prováveis aos prompts, isto é, partindo de uma imagem formada por pixels aleatórios (ruído inicial), a máquina seleciona gradativamente a imagem mais provável de emergir a partir da relação entre esses pixels iniciais e a mensagem contida no prompt. Desse modo, quanto mais “provável” (mais lógico, previsível, gramática e sintaticamente correto) o prompt, mais coerente e provável será a imagem produzida. Se o prompt começa a perder em coerência e lógica, as imagens geradas são cada vez mais improváveis, sem relação com o nosso próprio repertório de imagens. Para se alcançar certo nível de incoerência e aleatoriedade na criação de prompts a partir dos 2 livros em questão nos inspiramos no método de “CUT UP” de William S. Burroughs, produzindo uma versão digital dessa técnica, recortando e remontando trechos dos livros. O resultado são frases desconexas, muito ou totalmente improváveis sintaticamente. Em paralelo à introdução de “CUT UPs digitais”, exploramos a variação de “fundo/figura”: as imagens da mesa 1, que servem como input para a máquina, partem de situações onde a hierarquia fundo/figura é clara (facilitando a “compreensão” da máquina sobre o conteúdo da imagem) até chegar em imagens onde essa hierarquia é desconstruída (através da geração de superfícies dinâmicas mapeadas nas cores dos recortes coloridos). Com isso desestabilizamos a leitura maquinal gerando interpretações que variam em ressonância com a variação dos prompts.

Em DEEP ALICE, na fase final do sonho maquinal, radicalizamos a combinatória de símbolos do prompt ao inverter todos os caracteres da sentença gerada aleatoriamente pelo método anterior. Assim, exigimos da máquina a geração de imagens desassociadas das imagens do mundo humano. As imagens geradas continuam coerentes com os processos combinatórios/lógicos maquinais mas se desconectam do imaginário humano, das nossas imagens “imagináveis”. Na superfície dessas novas imagens artificiais sentidos dificilmente conseguem aderir. Eles deslizam continuamente no lado de fora da superfície/espelho e, de tanto deslizar, a atravessam. E nós? Também atravessamos o espelho? Afinal, “uohnos que asnep êcov meuQ?”

Nenhum comentário:

Postar um comentário